Gustavo Carona, médico e cronista habitual no jornal Público, teceu duras críticas à forma como a sociedade reagiu à tragédia que vitimou Diogo Jota, de 28 anos, e o irmão André Silva, de 25. Num desabafo frontal e sem rodeios, Carona lamentou o peso desproporcional que a morte de figuras públicas assume no espaço mediático, contrastando com o silêncio quase absoluto em torno das vítimas de conflitos armados ou das tragédias humanitárias que todos os anos matam milhões.
Na sua crónica, Gustavo Carona começou por destacar o que considera ser uma falta de honestidade social no tratamento do caso. “Nem sequer se tentou ensinar duas ou três coisas aos mais jovens sobre o que se sabe do acidente, mas de que ninguém quer falar: alugar um Lamborghini para fazer 900 km é ostentação, é esbanjar (…) o excesso de velocidade, o documentado e o especulado variam… Seja qual for, é a principal causa de mortalidade na estrada e é da exclusiva responsabilidade de quem vai a guiar”, escreveu.
Comparou ainda a morte dos irmãos com outras realidades, mais esquecidas: “Ser bombardeado e morrer à espera de comida em Gaza não é responsabilidade de quem morre. Guiar a alta velocidade é um perigo para quem vai no carro e para todos que vão na estrada.” E lamentou que a sociedade se recuse a abordar este tema de forma pedagógica. “Não é por serem ídolos de massas que a verdade deve deixar de ser dita, e a pedagogia deixar de ser feita.”
Carona aproveitou para questionar o culto à celebridade e o impacto que transmite às gerações mais novas. “Ser um famoso jogador da bola não é um exemplo para a sociedade, é um jogo com uma bola. Os heróis estão no SNS, nas escolas, nos bombeiros, na polícia, na luta cívica e política pelos mais desfavorecidos em todo o mundo, nos ucranianos que vão para a linha da frente (…) Mas, se a mensagem que mandamos aos novos e já não tão novos é a de que ser um herói é ser um futebolista de topo, milionário, e alugar um carro superdesportivo e conduzi-lo a altíssima velocidade, então depois não se queixem do mundo de esterco que estamos a construir para os nossos filhos.”
O médico desafiou os meios de comunicação social e as figuras públicas a refletirem: “Será pedir muito a todos os media e figuras públicas que multipliquem por 10 ou por 100 as palavras que dirigiram ao Diogo Jota, dedicando-as também às 20.000 crianças que morreram na Palestina (…) ou se preferirem aos 5.000.000 de crianças com menos de cinco anos que morrem em todo o mundo, todos os anos, na sua maioria de fome ou por mortes preveníveis ou tratáveis?”
E reforçou a sua crítica: “Será tão difícil perceber o quão injusta é uma sociedade que chora rios Amazonas pela morte de famosos, mesmo responsáveis pela própria morte, e que despreza ou até deseja e goza com a morte de crianças totalmente inocentes?”
No final da sua crónica, Gustavo Carona fez questão de ressalvar que as suas palavras não pretendiam atacar ninguém em específico. “Isto não é contra ninguém, isto é a favor da humanidade.” E deixou claro o respeito que sempre manteve por Diogo Jota, mesmo depois de ter deixado o clube da sua preferência. “Sempre tive uma admiração enorme pelo futebolista e um carinho muito especial pela pessoa simples, humilde, sorridente e bondosa, qualidades que muitos futebolistas pop stars jamais poderão ter e que eu valorizo imensamente.”
Num tom mais pessoal, terminou com um gesto de empatia para com a família dos irmãos falecidos: “É normal que uma estrela seja notícia, e a primeira coisa que me veio à cabeça foi a enorme empatia pela mãe, em sofrimento, que ficou sem dois filhos, que se estende aos familiares mais próximos e aos amigos dos dois.”